quarta-feira, 11 de abril de 2018

ÉTICA DIGITAL



Vivemos no momento denominado Pós-Modernidade, chamado por Zygmunt Bauman[1] de Modernidade Líquida (2001, p. 9), por onde retratou: “Essas são as razões para considerar ‘fluidez’ ou ‘liquidez’ como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na história da modernidade”.

Por alguns o tempo atual é chamado ironicamente e criticamente de Pós-Verdade, como referendado por Gurovitz[2] (2017), sendo marca deste lapso temporal as discussões que se avolumam, eis que nos fenômenos comucacionais muitos se combatem nas redes, com disputas inclusive entre Estados, Instituições, Corporações e pessoas comuns, tendo em conta que as redes sociais deram voz a todos. Tais atos e fatos têm impactos nas esferas pública, administrativa e privada, com efeitos nas dimensões psicológicas, jurídicas, sociais, pedagógicas e etc.

Na obra clássica Ética a Nicômaco[3], de quase dois mil e quatrocentos anos, de Aristóteles, encontra-se uma atualidade tamanha, dentre outras passagens, ao assim dispor tratando das virtudes e dos vícios:

O fim, sendo assim objeto de desejo, e os meios para alcançar o fim, objetos de deliberação e de escolha, as ações que dizem respeito a esses meios serão voluntárias e feitas por escolha. Por consequência, a virtude também depende de nós, e igualmente também o vício. De fato, como também depende de nós agirmos, e depende também não agir, e onde depende de nós dizermos não, depende também de nós dizermos sim; de modo que, se agir depende de nós quando a ação é boa, dependerá de nós também não agir quando a ação é vergonhosa, e se não depende de nós agirmos quando é boa, dependerá de nós também agir quando a ação é vergonhosa. Mas se realizar ações boas e vergonhosas depende de nós, do mesmo modo também depende o não realiza-las, e se isso significa ser bons ou maus, então depende de nós sermos virtuosos ou viciosos.

O nosso tempo, seja ele como for denominado, detém diversos desafios, pois, ainda que não se goste de tecnologia todos somos afetados por ela, por exemplo, quando alguém usa um GPS no veículo de transporte, filma ou tira foto de algo, pede um veículo por meio de aplicativo, usa um buscador e seus algoritmos para fazer consultas, comunica-se por aplicativos ou celular, usa qualquer tipo de aplicativo ou rede social, faz uma compra por meio eletrônico, usa um site de relacionamentos para conseguir um(a) companheiro(a) afetivo(a) e assim por diante.

Temas como moedas digitais, fake news, algoritmos, responsabilidade civil por curtir e compartilhar, reputação digital, inteligência artificial, internet das coisas, indústria 4.0, drones, aplicativos de comunicação, redes sociais, crimes eletrônicos, carros autônomos, aplicativos de transporte individual e outros são assuntos corriqueiros que exigem um enfrentamento ético de escolhas, como proposto por Morpheus em Matrix, pílula azul ou vermelha?

Estamos nas grandes cidades, com a vigência de um contrato social. Não se pode olvidar de se conhecer a si mesmo, trabalhar a empatia com os outros e de se entender que se faz parte de um grupo ou sistema. Deve-se pensar nas relações sistêmicas, como destacado por Goleman e Senge[4] (2015, p. 8):

Eles descrevem três conjuntos de habilidades cruciais para se orientar em um mundo acelerado de distrações crescentes e envolvimento interpessoal ameaçado – um mundo no qual as ligações entre as pessoas, os objetos e o planeta são mais importantes do que nunca. Pense nesses conjuntos de habilidades como um foco triplo – interno, no outro e externo.

Quando se enfrenta questões tecnológicas, especialmente no que se refere à internet e as redes sociais, lembra-se da chamada Alegoria da Caverna de Platão, em que se destacam as incertezas e a importância da educação, como mencionado por Maciel[5]:

De acordo com a apresentação de Platão, Sócrates teria respondido aos questionamentos de Glauco, quanto a influência da educação na natureza humana, descrevendo um aglomerado de pessoas que tem vivido acorrentadas desde a infância, encarando uma parede vazia, incapazes de ver uns aos outros ou a si mesmos. Estas pessoas assistem sombras projetadas na parede vazia, sombras de coisas passando em frente ao fogo atrás delas, e começam a dar nomes a estas sombras. Entre as pessoas e o fogo há uma pequena parede, que impede que os acorrentados vejam aqueles que passam em frente ao fogo, carregando objetos, mas vejam apenas os objetos se movendo, como em um teatro de fantoches. Ainda, os sons vindos de fora ecoam pelas paredes da caverna, fazendo com que os acorrentados pensem tratarem-se de sons produzidos pelos objetos que parecem mover-se sozinhos.

A aparente incerteza que os elementos digitais geram pode ser superada, como aqui será enfrentado, em especial considerando as questões de ética, direitos humanos e a cidadania, como complexo de respeito à dignidade da pessoa humana norteando as boas condutas e as melhores práticas que todos os indivíduos merecem receber. Na era digital, ainda é elementar dar o devido respeito e destaque à perpétua e irrevogável Educação.

Abaixo se utilizará de conceitos éticos tradicionais e modernos para transportar eles para os desafios da era digital. Nota-se que, assim como em outras áreas, a falta de educação básica é um dos problemas que redunda nos embates que saltam para a internet.

Crê-se que em breve será considerado como abandono intelectual não preparar os jovens para os novos desafios tecnológicos, especialmente a internet, considerando as redes sociais uma parte muito sensível disso. Inclusive é o que apregoa o próprio Marco Civil, Lei nº 12.965/2014, especialmente os artigos 24 e 26, do referido diploma legal.

Fatos reais da área digital ou cibernética já existem e surgirão que colocarão os pais e educadores na linha de frente de desafios do dia a dia, onde quase tudo é on-line. Temas ligados a aplicativos, internet das coisas, big data, drones e inteligência artificial – apenas para citar alguns exemplos – ainda muito evoluirão, desaguando em consequências e reflexos no que tange a intimidade, privacidade e tensões de direitos entre as partes envolvidas.

Desta maneira, criar uma mentalidade de ética digital é crucial! Ensinar aos jovens a criar uma reputação digital é elementar. Pois muitas empresas contratam considerando os perfis das pessoas nas redes sociais, antes e durante a contratação [6] [7].

A partir de fevereiro de 2015 entrou em vigor a Lei nº 13.185[8], publicada em 06/11/15, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying). Seu artigo 4º instituiu as medidas preventivas e se conscientização a serem tomadas, a saber:

Art. 4o Constituem objetivos do Programa referido no caput do art. 1o:
I - prevenir e combater a prática da intimidação sistemática (bullying) em toda a sociedade;
II - capacitar docentes e equipes pedagógicas para a implementação das ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema;
III - implementar e disseminar campanhas de educação, conscientização e informação;
IV - instituir práticas de conduta e orientação de pais, familiares e responsáveis diante da identificação de vítimas e agressores;
V - dar assistência psicológica, social e jurídica às vítimas e aos agressores;
VI - integrar os meios de comunicação de massa com as escolas e a sociedade, como forma de identificação e conscientização do problema e forma de preveni-lo e combatê-lo;
VII - promover a cidadania, a capacidade empática e o respeito a terceiros, nos marcos de uma cultura de paz e tolerância mútua;
VIII - evitar, tanto quanto possível, a punição dos agressores, privilegiando mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva responsabilização e a mudança de comportamento hostil;
IX - promover medidas de conscientização, prevenção e combate a todos os tipos de violência, com ênfase nas práticas recorrentes de intimidação sistemática (bullying), ou constrangimento físico e psicológico, cometidas por alunos, professores e outros profissionais integrantes de escola e de comunidade escolar.

Nessa levada, o homem é um ser ético. E a dignidade da pessoa humana sempre deve ser o centro das atenções. Com essa observação pontuaram Rocasolano e Silveira[9] (2010, p. 35):

Pode-se afirmar, destarte, que o ser humano não se limita a viver uma vida casual e determinada apenas pelos processos naturais; o homem constrói a sua própria história, fruto das suas constantes decisões histórico-seletivas. Enfatiza-se a ideia do ser humano como ente que é e que deve ser, consciente dessa dignidade. É precisamente da autoconsciência acerca de sua dignidade que surge o conceito de pessoa, segundo o qual o homem não é homem apenas porque existe, mas pelo significado que adquire sua própria vida.
Do exposto podemos concluir que o conceito de homem oferecido por Miguel Reale orienta-nos para compreender sua condição de pessoa – que nos auxilia, por sua vez, a dimensionar a ideia de valor, porque a pessoa será definida como valor-fonte de todos os valores.
Devemos a Kant o reconhecimento de que o homem, enquanto homem – mesmo tomado como simples possibilidade de realizar-se na sociedade e no Estado –, já possui um valor infinito, condição de toda vida ética.

Interessante notar que, a ética está em total antagonismo com a corrupção. Um grande mal do país, arraigado fortemente em nossa cultura. Em 2009, já antevendo os escândalos da Lava Jato e correlatos, assim bem detalhou Lucca[10] (2009, p. 364), fazendo referências a outro autor:

A verdade é que a chamada retórica do poder já enfastiou a todos. Ninguém suporta mais o descalabro ético da sociedade brasileira. A classe empresarial – diz-nos, com propriedade o escritor e empresário Mario Ernesto Humberg – possui a grande responsabilidade de liderar a mudança ética no País, mostrando que a “roda do futuro começa a girar de forma diferente”, e asseverando que alguns empresários “já estão sensibilizados para essa necessidade de adotar princípios éticos nos seus negócios e estão assumindo essa responsabilidade.”
E prossegue: “O fundamental é que cada um comece a mudança pelo micro-universo em que sua presença é determinante e os resultados são facilmente comprovados – ou não. Não basta fazer declarações genéricas ou dizer que os políticos, governantes ou fiscais são corruptos. Isso é, no geral, meia verdade, porque na maioria das vezes eles são a parte passiva do processo. Mesmo que tenha exigido, sua ação é receber a propina, o jabaculê, a comissão, o p.f., a caixinha. A parte ativa do processo é normalmente um dirigente empresarial – que dá o dinheiro, seja para vender produtos ou serviços aos governos, de simples guarda-chuvas a grandes barragens, para apoiar candidatos que defendam seus interesses, ou para esconder falcatruas.

Especificamente sobre eticidade digital expuseram Freitas, Whitaker e Sacchi[11] (2006, p. 16), deste modo:

A autora comenta também (WHITAKER, 2002a, p. 5) que todos os que têm nas empresas, à sua disposição, o instrumento da comunicação, no caso o computador ligado a uma rede, acham-se no direito de transmitir comunicados e informações. A ética é essencial nesse momento, em que cada integrante da empresa tem em suas mãos tão poderoso instrumento e com ele pode comunicar, informar e, em consequência, talvez inconscientemente formar ou deformar o caráter das pessoas.
Isso significa que as altas heranças das empresas devem estar empenhadas em se atualizar e assessorar-se para estabelecer um processo de comunicação em suas organizações, tendo em vista essa nova ordem instalada na sociedade atual, geradora de tantes inovações. Inovações não somente de ferramentas colocadas à disposição de todos (a informação, por exemplo, hoje não é privilégio de alguns, está disseminada por toda parte), mas também inovações provocadas na pessoa: em diretores, acionistas, colaboradores, concorrentes, fornecedores e clientes das empresas. Deve haver um esforço de aperfeiçoamento contínuo, estruturado pelas altas lideranças das empresas, direcionado a todos os seus stakeholders. Isso exige constante e permanente atenção com a conotação ética das atitudes das pessoas.

De um viés acurado se nota que, a eticidade digital auxiliária a resolução de dilemas, por exemplo nas relações de consumo, no Facebook. Duelando estarão o direito a manifestação do pensamento frente o respeito à reputação digital da empresa.

Para ajudar a dirimir tal aparente conflito, traz-se a baila a hermenêutica jurídica, conforme bem fundamento por Ferraz Jr.[12] (1994, p. 308):

Deste modo a hermenêutica possibilita uma espécie de neutralização dos conflitos sociais, ao projetá-los dimensão harmoniosa – o mundo do legislador racional – na qual, em tese, se tornam todos decidíveis. Ela não elimina, assim, as contradições, mas as torna suportáveis. Portanto, não as oculta propriamente, mas as disfarça, trazendo-as para o plano das suas conceptualizações. Repete-se, pois, na hermenêutica o que ocorre com a dogmática analítica (supra 4.4). Enquanto esta, porém, exerce sua função ao isolar o direito num sistema, o saber interpretativo conforma o sentido do comportamento social à luz da incidência normativa. Ela cria assim condições para a decisão. Mas não diz como deve ocorrer a decisão. Para isso existe um terceiro modelo dogmático que toma a própria decisão como seu objeto privilegiado.

No que tange as novas tecnologias de comunicação e informação, em interessante artigo de modo firme concluiu Maggiolini[13] (2014):

Em síntese, qual é o papel da “ética da tecnologia da informação” (que inclui a Ética Digital, mas a transcende)? Da obra de Platão – Fedro – poderíamos assumir o que diz o rei do Egito a Theuth, o deus que inventou a primeira tecnologia da informação da humanidade, a escrita: Quando, porém, chegou a ocasião da escrita, Theuth comentou: “Este é um ramo do conhecimento, rei, que tornará os Egípcios mais sábios e com melhor memória. Na verdade, foi descoberto o remédio da memória e da sabedoria”. Ao que o rei responde: “Ó engenhosíssimo Theuth, um homem é capaz de criar os fundamentos de uma arte, mas um outro deve julgar que parte de dano e de utilidade possui para quantos dela vão fazer uso. Ora tu, neste momento, como pai da escrita que és, apontas-lhe, por lhe quereres bem, os efeitos contrários àqueles de que ela é capaz.” Cada nova tecnologia da informação, com certeza, dá um passo adiante na história da civilização humana. E os seus “inventores” (e em geral quem tem interesse, especialmente econômico, na sua adoção e difusão) as elogiam, enfatizando seus benefícios, suas vantagens para a economia, para a sociedade, enfim, para a humanidade inteira. Mas alguém, um “rei do Egito”, o que encarna a consciência critica, a ética da humanidade, antes que os danos em potencial se manifestem de maneira irreversível, ou caros demais para consertar, poderia – deveria! – poder “julgar qual parte de dano e da utilidade possui para quantos dela vão fazer uso” e divulgar essa consciência.
A evolução e difusão das tecnologias são realmente velozes, como vimos, portanto a consciência critica deve ficar alerta e tornar-se igualmente rápida. Tem se expandido a ideia (ou “mito”) de que, graças às TIC e às redes, se poderia “restaurar” (?) a democracia direta. Para quem pensa assim, vai aqui o conselho da leitura do profético livro de Morozov (2011), The net delusion. Não devemos acalentar ilusões: além da potencialidade indiscutível a serviço da política (ou seja, da vida da polis) de Internet & Co., devemos desmascarar a “ingenuidade” de muitas expectativas, para evitar que a Net Delusion afogue todas as esperanças e a fé nos milagres das Tecnologias da Informação e Comunicação.

A necessidade de educação digital já é uma realidade indesculpável! Urge que a sociedade de um modo geral e as corporações não descuidem disso, com urgência para ontem! De outro lado, como já noticiado, há empresas de tecnologia contratando profissionais de ética para acompanhamento e validação de seus produtos e serviços. Nota-se que, de modo peremptório, o profissional de ética é muito necessário para que se atribua valores às situações, com o fito de que a máquina continue a servir o homem (inclusive como disciplinam as Três Leis da Robótica[14]) e nunca o contrário!


[1] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien, Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
[2] GUROVITZ, Helio. O jornalismo na época da pós-verdade. Revista Época. 21/08/17. Disponível em: http://epoca.globo.com/cultura/helio-gurovitz/noticia/2017/08/o-jornalismo-na-era-da-pos-verdade.html. Acesso em: 23/09/17.
[3] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Luciano Ferreira de Souza, São Paulo: Martins Fontes, 2015.
[4] GOLEMAN, Daniel; SENGE, Peter. O Foco Triplo. Uma nova abordagem para a educação. 1ª Edição, Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
[5] MACIEL, Willyans. Alegoria da Caverna. Info Escola. Disponível em: http://www.infoescola.com/filosofia/alegoria-da-caverna/. Acesso em: 24/09/17.
[8] BRASIL. Lei 13.185, de 06 de novembro de 2015. Institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13185.htm. Acesso em: 10/10/17.
[9] SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; e ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010. Página: 35.
[10] De LUCCA, Newton. Da ética geral à ética empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2009. Página 364.
[11] FREITAS, Lourdes Maria Silva; WHITAKER, Maria do Carmo; SACCHI, Mario Gaspar. Ética e internet: uma contribuição para as empresas. São Paulo: DVS Editora, 2006. Página: 16.
[12] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 1995. Página 308.
[13] MAGGIOLINI, Piercarlo. Um aprofundamento para o conceito de ética digital. Revista de Administração de Empresas, FGV- EAESP. Volume 54. Número 5. São Paulo: 2014. Páginas: 585-591.
[14] Três Leis da Robótica: 1) um robô não pode ferir um humano ou permitir que um humano sofra algum mal; 2) os robôs devem obedecer às ordens dos humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a primeira lei; e 3) um robô deve proteger sua própria existência, desde que não entre em conflito com as leis anteriores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário