Estamos a vivenciar um
momento histórico da humanidade e ímpar pela restrição de convívio em que as
redes sociais são enormemente utilizadas, tempo esse imaginado talvez pelos
cientistas ou pelos romancistas de ficção científica. Um momento muito triste
em que muitas pessoas estão perdendo familiares e amigos, o que se aproxima
cada vez mais perto de todos, com isso resultando em postagens nas redes
sociais com homenagens aos finados, desta forma, elogiando quem passou por aqui
com vida e deixando memórias. Deixo a ressalva que o meu texto tratará das
pessoas que não são públicas, pois nesse caso as interpretações legais, em
alguns aspectos, poderão ser diferentes.
Não se critica essas
atitudes, afinal cada qual faz o que quiser com as próprias redes sociais[i], afinal o direito de
manifestação ao pensamento é consagrado constitucionalmente[ii]. Contudo, primeiro em uma
visão sistêmica, opina-se que transformar as redes sociais em um grande mural
online de obituários não seja uma das melhores escolhas para deixar um ambiente
mais esperançoso, nesse embate de eventual realidade versus positividade e
esperança. Todos estão muito sobrecarregados com as suas respectivas saúdes
mentais, seja pelos cuidados com a família, sobrecarga de trabalho, doenças
pré-existentes, falta de trabalho, afastamento dos mais vulneráveis, por perdas
recentes também, ou seja, só cada um sabe dos seus sacrifícios.
No segundo enfoque tem
uma questão de legitimidade nesse olhar, por exemplo, se a postagem parte do
sobrevivente cônjuge/companheiro ou parente na linha reta (avós, pais, filhos e
netos, por exemplo) ou seja, ascendentes ou descendentes, pois se motivados sob
forte emoção é compreensível que naquele momento aquele “postador” busque
reproduzir os seus sentimentos nas redes. Porém, se não é o caso, se não houve
autorização prévia [seja do(a) próprio(a) finado(a) ou dos herdeiros] os sucessores
poderão não gostar dessa superexposição.
Nesse sentido, diz o
Código Civil Brasileiro (CCB) preservando o direito de imagem (artigo 20)[iii] delimitando os direitos
dos herdeiros do falecido e a inviolabilidade da vida privada (artigo 21)[iv]. Vale também consignar o
que diz a legislação (CCB, artigo 12[v]), por onde abre um grande leque
possibilitando que inclusive os parentes na linha colateral até o quarto grau
(primos e primas) possam exercer o direito de reclamar perdas e danos, em caso
de lesão ao direito de personalidade.
Ainda do ponto de vista
legal a própria Constituição garante o direito à intimidade e a privacidade[vi], bem como, o direito de
resposta[vii] proporcional ao
malefício recebido, garantindo a devida indenização, em sede de dano material,
moral ou à imagem[viii].
Portanto, uma simples publicação pode nos colocar em uma situação no mínimo
desagradável, eis que fica evidente que o direito de manifestação ao pensamento
não é ilimitado, pelo contrário, os seus limites estão em outros direitos e
princípios constitucionais consagrados em nosso sistema legal, no caso com evidente
choque entre direito de expressão e direito de imagem.
Para citar a
importância do direito personalíssimo de imagem, o uso de imagem dos próprios filhos
já redundou em discussões sobre privacidade e intimidade, notadamente com a
criação do termo: sharenting[ix].
O que levou até a decisões judiciais. Inclusive o uso de imagens dos netos
pelos avós pode implicar em demandas processuais[x]. A título de curiosidade,
durante o Big Brother algumas pessoas passaram a usar as imagens de
participantes para fins comerciais, o que geraria consequências, conforme a
Súmula 403, do Superior Tribunal de Justiça[xi].
Sobre a doença
COVID-19, não acho aconselhável a divulgação da ocorrência, exceto para fins de
estatísticas científicas ou para orientações médicas. Sendo fato que eventuais
sequelas poderão gerar discriminações, como planos de seguro e de saúde mais
caros, além de ocorrer no nicho do mercado de trabalho, tendo em conta que com
a hipotética queda de cognição esses candidatos poderão sofrer preconceito em
possível processo seletivo. Assim, pegar a foto de terceiro apontar a sua morte
e a causa não parece algo razoável para alguém que não tenha legitimidade
legal, especialmente pelas implicações desta doença, especificamente.
Desta forma, o uso de
imagem alheia seja a imagem retrato (aparência física) ou da imagem atributo
(as características do indivíduo fotografado) podem repercutir em uma
publicação dessa modalidade, se tem fins comerciais ou não. Afinal o direito de
imagem é um direito personalíssimo. Sem se falar no direito de propriedade
intelectual de quem tirou a foto, o que gera outros acervos de proteção legal.
Uma pesquisa de ética
digital que deve ser feita, antes de publicar algo, seja de alguém vivo ou não:
“Ele/ela gostaria que a imagem dele/dela fosse publicada?” E nessas
circunstâncias?
Por todos esses
elementos, desse delimitado texto, assinala-se como diz uma frase de um vídeo
que gosto de usar em apresentações: “Pense antes de postar.” Ou como diz o
provérbio chinês: “A palavra é prata, o silencio é ouro.” Ainda que não se
cometa um ilícito civil, ou seja, uma situação de violação de direito de imagem
e que redundará em possível indenização ou medidas de remoção, ainda assim
poderá ocorrer uma quebra de ética ou de etiqueta no uso das redes sociais.
ADRIANO AUGUSTO FIDALGO. Advogado Sênior da Fidalgo Advocacia. Professor (MBA´s Universidade
Anhembi Morumbi, Faculdade do Comércio de SP e IBMR [RJ]). Mestre em Educação
na linha de pesquisa: Educação, Filosofia e Formação Humana. Presidente da Comissão de Direito Digital
da OAB/Santana. Diretor da Associação
Brasileira De Advogados (Freguesia Do Ó, Zona Oeste/SP). Membro das Comissões de Direito
Civil, Direito Sistêmico e OAB Vai à Escola Digital da OAB/Santana. Membro
Efetivo da Comissão Especial de Privacidade e Proteção de Dados da OAB/São
Paulo. Membro
da Comissão de Direito Digital da OAB/Butantã e da
Associação Nacional dos Profissionais de Privacidade de Dados. Coordenador
Jurídico e Educacional da RENNEE (Rede de Negócios, Network, Ética e Estudos). Grupos
de Pesquisa no CNPQ: GRUPETECD e GRUPJUS. Bolsista Capes (2017/2018).
[i]
Como diz a célebre frase
equivocadamente atribuída a Voltaire: ““Discordo do que você diz, mas
defenderei até a morte seu direito de dizê-lo”. RODRIGUES, Sérgio. Discordo
do que você diz, mas... Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/discordo-do-que-voce-diz-mas-8230/#:~:text=mar%202015%2C%2010h00-,%E2%80%9CDiscordo%20do%20que%20voc%C3%AA%20diz%2C%20mas%20defenderei%20at%C3%A9%20a%20morte,Ou%20n%C3%A3o%3F. Acesso em: 15 mai. 2021.
[ii] Conforme consagrado no artigo
5º, inciso IV: “[...] IV - é livre a
manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; [...].” PLANALTO. Constituição
Federal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em:
15 mai. 2021.
[iii] “Art. 20. Salvo se
autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da
ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a
publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser
proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe
atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins
comerciais. (Vide ADIN 4815)
Parágrafo único. Em se tratando de morto
ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os
ascendentes ou os descendentes.” PLANALTO.
Código Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em:
15 mai. 2021.
[iv] “Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o
juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para
impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. (Vide ADIN 4815)” PLANALTO. Código Civil. Disponível
em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso
em: 15 mai. 2021.
[v] “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a
direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras
sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se
tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste
artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral
até o quarto grau.” PLANALTO.
Código Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em:
15 mai. 2021.
[vi] Segundo o artigo 5º, inciso X:
“[...] X - são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...].”
PLANALTO. Constituição Federal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em:
15 mai. 2021.
[vii] Lembro-me de uma audiência que
fiz, nomeado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em que duas
torcedoras que eram anteriormente amigas, de uma torcida organizada, passaram a
se ofender nas redes sociais. As brigas foram tão intensas que ambas encerraram
os seus perfis no Facebook. Contudo, cada qual em sua região de mordia adentrou
com um processo criminal em desfavor da outra. No processo que estive as duas
tiveram que reativar as respectivas contas na rede social, uma aceitando a
outra como “amiga”, de maneira que a ofensora teve que publicar o conteúdo da
audiência com um pedido de desculpas, definido em audiência que a publicação
ficasse disponível por dez dias, nos perfis das duas.
[viii] Nos dizeres do artigo 5º, inciso
V: “[...] V - é assegurado o direito
de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material,
moral ou à imagem; [...].” PLANALTO. Constituição Federal. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso
em: 15 mai. 2021.
[ix] CHEUNG, Helier. Publicar
fotos dos filhos nas redes sociais é invasão de privacidade? Portal BBC.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-47731061. Acesso em: 16 mai. 2021.
[x]
“Uma avó está sendo
obrigada pela justiça holandesa a apagar todas as fotos de seus netos
compartilhadas no Facebook e no Pinterest. O motivo? Ter publicado as imagens
sem autorização dos pais. A sua filha, mãe de um jovem de 14 anos e de duas
crianças de seis e cinco anos, foi a responsável pelo processo judicial, que se
baseou em regras de privacidade do Regulamento Geral de Proteção de Dados
(GDPR) da União Europeia, que inspirou a nossa Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais (LGPD), que entraria em vigor em agosto deste ano no Brasil. CRUZ, Bruna
Souza. Avó é obrigada pela justiça a apagar fotos de netos do Facebook.
Portal UOL. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/05/22/com-base-na-gdpr-justica-obriga-avo-a-apagar-fotos-de-netos-do-facebook.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 22 mai. 2021.
[xi]
“Súmula 403. Independe de prova do
prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com
fins econômicos ou comerciais.” Disponível
em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2014_38_capSumula403.pdf. Acesso em: 22 mai. 2021.