Eu não tinha intenção de assistir a tão propalada série da Netflix, a
denominada Round 6 (um fenômeno de audiência), contudo, isso foi se alterando pela
motivação de ter despertado também o interesse de muitas crianças (inclusive a
minha filha), já que um dos chamarizes da série é a realização de provas baseadas
em brincadeiras infantis, com pais descuidados caindo nesse canto da sereia e
deixando crianças terem contato com o seu conteúdo, lembrando que a
classificação etária é de 16 anos. Para se criticar ou elogiar, primeiramente,
tem que se assistir.
Achei que deveria conhecer para fazer conexões com aspectos legais e também
porque, como seres históricos e vivenciadores de fatos, entende-se, devemos compreender
porque uma série dessas despertou tanto interesse social.
Contudo, a série em si traz questionamentos provocantes do ponto de
vista da privacidade, intimidade, do sigilo, pois, como todos os participantes
são captados e convidados a participar? De onde vem os seus dados? Imagina-se
que, com violações ou dados vazados, o que coincide com o nosso momento atual
de enorme fragilidade em segurança dos nossos dados, sendo o Brasil também um
dos países que mais sofrem com os crimes digitais e golpes de diversas
naturezas.
A violação de dados por si só já seria uma ilegalidade, inclusive por
escolher as pessoas cientes de suas vulnerabilidades e considerando que esse “show”
pode ser vendido para os telespectadores, online ou presencialmente (com lucro).
De onde veio o dinheiro das premiações? Lembrando que no Brasil temos a Lei Geral
de Proteção de Dados e outras normas, assim como em diversos países normas
similares, já que o poderio das grandes empresas de tecnologia e bancos nos
deixam fragilizados em diversos aspectos. No Brasil os empréstimos bancários
equivalem à agiotagem legalizada.
Curiosamente, a própria série causou um incidente de privacidade: “Entretanto,
um número de telefone, que aparece logo no começo da história, provou-se
comprovadamente real. O número existe e vários fãs de 'Round 6' tem ligado para
ele, causando problemas para a proprietária do telefone, uma mulher coreana,
que passou a receber ligações e mensagens constantes.” (Disponível em: https://www.terra.com.br/diversao/tv/series/serie-da-netflix-round-6-divulga-numero-real-de-telefone,cf821e3f76044526231bc3e6bd897293g46ewvy4.html.
Acesso em: 11.out. 2021).
De outro lado, a série traz discussões pontuais sobre temáticas sociologicamente
relevantes como doação compulsória de órgãos, tráfico de órgãos, violência, etarismo,
sexismo, xenofobia e outros assuntos correlatos, abordando também como as
pessoas agem nos seus limites, com precisão, seja por dinheiro, seja para
preservar a própria vida, em suma, como podem se submeter a situações em que a
própria integridade física (morrer pelo não cumprimento da norma de um jogo) seja
colocada em risco.
A série traz uma discussão interessante também sobre a pobreza, as dívidas,
uma crítica social sobre questões de desigualdade social, direito de moradia,
assistência médica, alimentação digna e outros. Aborda também fatores
importantes como a dualidade humana, envolvendo o bem e o mal, que me fez
relembrar de Edgar Morin quando ele classifica os seres humanos como homo sapiens sapiens (o humano na fase de
evolução atual) e também o homo sapiens demens
(o lado selvagem, louco e errante).
O jogo aborda democracia (?) com a votação sobre a continuidade no jogo,
porém quem está com a sua vontade totalmente livre com a eminente perda de
alguém próximo por motivo de saúde ou distância, ameaçado de morte ou doação forçada
dos órgãos, ameaçado por gangues, dívidas, iminente prisão e etc.?
Enfim, um topa tudo por dinheiro, sem a ingenuidade do programa matinal do
Silvio Santos. Mostra uma face cruel da raça humana, colocando-a no centro de
um jogo de vida e morte, coisificação do humano, com os participantes sendo
tratados por números que constam nos seus agasalhos. Por isso, impróprio para
as crianças, que mesmo sem assistir merecem a explicação de uma mediação
humanística para se entender porque para eles é inadequado, jamais glamourizar a
tratativa dos seres humanos como cobaias (apesar de sabermos que algumas redes
sociais também tem feito isso com todos nós).
ADRIANO AUGUSTO FIDALGO. Futebolista Amador. Praticante de gritoterapia nos raros videokês que tem
a coragem de participar. Professor de Direito. Advogado Sênior Fundador da
Fidalgo Advocacia. Doutorando e Mestre em Educação na linha de pesquisa:
Educação, Filosofia e Formação Humana. Pós Graduações Lato Sensu em Direito Processual Civil, Direito Tributário,
Computação Forense e MBA em Auditoria.
Presidente da Comissão de Direito Digital
da OAB/Santana. Diretor da Associação Brasileira de
Advogados – Freguesia do “Ó” Zona Oeste/SP. Membro Efetivo da
Comissão Especial de Privacidade e Proteção de Dados da OAB/São Paulo. Coordenador Acadêmico Jurídico da RENNEE – Rede de Negócios, Network,
Ética e Estudos. Membro
das Comissões de Direito Civil, Sistêmico e OAB Vai à Escola da OAB/Santana. Membro
da Comissão de Direito Digital da OAB/Butantã e da Associação
Nacional dos Profissionais de Privacidade de Dados.